“O amor tem o rosto da violência”: Kafka e sua contemporaneidade

Monaliza
5 min readNov 22, 2020

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Young Franz Kafka - Daveed Shwartz. Aquarela sobre madeira e gesso.

“Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava do que não podia me queixar junto ao teu peito.”(p. 69)*

Carta ao Pai pode ser lido a partir de muitas camadas. É, ao mesmo tempo, um avanço em uma intimidade familiar e um esforço tremendo na compreensão do outro e do eu, é também uma obra de valor literário profundo, com potência de metáforas e símbolos. É um documento de época e um fragmento importante para a compreensão da biografia do autor. De todas, gostaria de falar da camada mais evidente: a dureza na relação entre pai e filho transformada em literatura. Me parece que a contemporaneidade do texto de Kafka está justamente neste principal argumento, os problemas com nossos pais continuam a gerar debates, idas ao terapeuta e, no limite, são gatilhos da própria subjetividade e criação. Nesta elementar relação, reside parte de nossas dores intransmissíveis e, portanto, traduzidas pela arte.

Comecemos pelo começo: Carta ao Pai é uma publicação póstuma de uma carta escrita para Hermann Kafka, pai de Franz Kafka. O texto foi escrito em 1919, após mais um desentendimento, desta vez por conta da atitude paterna frente ao noivado de Franz. A carta surge então como uma tentativa de remediar, ou ao menos compreender, a relação conflituosa e difícil. A edição que tenho comigo é a da L&PM Pocket, por sinal muito bem feita, cheia de notas de rodapé que auxiliam na compreensão do contexto de escrita e da biografia do autor. A tradução do alemão, feita por Marcelo Backes, respeitou a segunda pessoa do singular da língua, sem traduzi-la como você. Não sou formada em Letras e desconheço grande parte das discussões sobre tradução e linguística, mas como estudante da língua alemã, me pareceu um respeito admirável ao autor e ao leitor.

A carta se inicia com Kafka reafirmando o medo que sente do pai. E a partir desta afirmação todo o texto avança em uma profunda, íntima e cotidiana análise da infância, juventude e vida adulta. Kafka busca a todo momento responder à pergunta inicial e justificar seus comportamentos, características e escolhas, atrelando-os à tirania e atitudes do pai. Longe dos esteriótipos de violência que poderíamos imaginar, como o da agressão física por exemplo, Franz Kafka passa a nos narrar (ou melhor, narrar ao próprio pai), violências simbólicas e autoritárias que experienciou. Gradativamente, percebemos como o Hermann contribuiu para muitos dos sofrimentos mais íntimos do autor, suas inseguranças, difíceis relações familiares, relação com o sexo oposto, relação com o próprio corpo, religião e até mesmo a escrita.

Nesses variados exemplos, talvez muitos leitores se reconheçam. As violências do pai de Kafka não são vestígios de determinado período, ao contrário, se perpetuam e alcançam a minha geração. Provavelmente alcançarão as gerações dos anos que estão por vir. Quando Kafka diz que via no pai “a medida de todas as coisas”, quem não poderia, ao menos sutilmente, se identificar? Nossos pais são, enfim, nossos primeiros parâmetros de força, razão e amor. Ainda que inconscientes, sempre buscamos suas aprovações. Quando Kafka nos diz que a relação com o sexo, namoradas e mesmo a autoconfiança em relação ao seu próprio corpo foram todos comprometidos pela insegurança cultivada na infância e alimentada pelo pai, como poderíamos não nos lembrarmos das mais atuais discussões sobre o mesmo tema?

Kafka, em frases longas e através de uma qualidade literária que me assusta, aponta que boa parte daquilo que mais odeia em si é reflexo da criação a qual foi submetido. Foi difícil ler a crueza das verdades que o autor revela ao destinatário: sua dificuldade e medo em se comunicar com aqueles ao seu redor, sempre assombrado pela figura autoritária do pai. E, depois, a culpa e vergonha por ser demasiadamente influenciado por essa mesma figura, obediente de forma quase cega. Ou então a forma fria com que Hermann compreendia a educação dos filhos, em suas violentas tentativas de consertar aquilo que considerava falha de caráter.

Em determinada altura do livro o autor destaca que, mesmo que seu pai fosse outro, Kafka ainda assim seria inseguro e tímido, por sua própria natureza. No entanto, a exata reunião das características eminentes de Kafka e o despotismo de Hermann, convergem em gerar a conflituosa e envenenada relação entre pai e filho. De tudo, o que mais me toca é essa específica consideração de Kafka sobre toda a amarga situação: os e se do livro são comoventes pois acabam por nos indicar o esforço do autor em compreender como a relação chegou naquele ponto, ou a impossibilidade de que escapassem de magoarem um ao outro.

Talvez eu tenha deixado o que mais me inquieta para o fim: a carta nunca foi entregue. Marcelo Backes chega a levantar a hipótese de que o documento foi dado a mãe que, cuidadosa, recusou entregá-lo ao destinatário, já adivinhando sua reação. No fundo, não se sabe ao certo porque Kafka jamais entregou a carta. Talvez, supôs que o pai sequer a leria ou ponderou que o texto faria mais mal que bem. Talvez sua insegurança o tenha vencido, novamente. A dureza do texto, que é literário mas também alcança a concretude do relato, aqui me atinge. Franz Kafka não levou adiante a tentativa de se acertar com o pai, ou ao menos deixar submergirem todos os profundos ruídos que esta relação estabelecia e essa não finalização deixa a leitura com uma carga ainda mais real e triste.

*A citação do título foi tirada do trecho: “Em nosso passeio voltamos a chegar ao Kinsky-Palais quando saiu da loja Hernann Kafka um homem alto e largo, de sobretudo escuro e chapéu brilhante. Ele ficou parado a cerca de cinco passos e esperou por nós. Quando nos aproximamos mais três passos, o homem disse, bem alto: ‘Fraz. Para casa. O ar está úmido.’ Kafka me disse, em voz estranhamente baixa: ‘Meu pai. Ele se preocupa comigo. O amor muitas vezes tem o rosto da violência.” Gespräch mit Kafka. Aufziechmungen und Erinnerrungen. — Gustav Janouch

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Monaliza

Redatora, pesquisadora e historiadora. Todos os dias acredita um pouco mais no poder da leitura, escrita e criatividade.